Gordos e suculentos Meloidae!

ResearchBlogging.org

Quando eu andava no ensino básico e secundário, o meu irmão estava empenhado em fazer uma colecção de insectos. Embora feita de forma amadora, a colecção permitiu ao Rui e a mim aumentar bastante o nosso conhecimento sobre insectos (muito mais a ele do que a mim, tenho que o dizer!). Eu ia ajudando com os espécimes que apanhava, uns vivos outros mortos, e para esse efeito andava sempre com um frasquinho na minha mochila, facto que os meus colegas achavam muito curioso e divertido. Na Primavera de 2003 a minha turma foi em visita de estudo a Évora. Numa paragem para ver vestígios megalíticos, no meio do campo, um colega meu aponta-me para um estranho bicho gordo a andar pelo chão; seria imensamente pretensioso dizer que conhecia bem a diversidade de insectos, mas eu fazia alguma ideia dos tipos principais que existiam (erro crasso, sei agora), por isso que raio era aquilo? Um insecto gordo, muito comprido, negro, com um abdómen gigante com riscas vermelhas transversais! Peguei nesse bicho fantástico para o ver melhor, mas antes de ter oportunidade de o guardar, vejo um líquido avermelhado a sair-lhe do abdómen para as minhas mãos – num acto completamente instintivo larguei-o, e ele caiu no chão, e embora a vegetação fosse rasteira, evaporou-se!

Nunca mais vi o animal, mas ao falar com o meu irmão sobre o que seria, e após algumas pesquisas, lá chegamos à conclusão que deveria ser um escaravelho da família Meloidae – embora a maioria tenha um aspecto de escaravelho mais ou menos normal, alguns são uns grandes bichos com um abdómen inchado. Em algum sítio vimos o sugestivo nome “arrebenta-bois”, mas actualmente já não consigo encontrar essa associação. Em inglês têm o nome “oil-beetles”, ou escaravelhos-óleo, devido ao líquido que deitam, e em espanhol encontro o termo “aceitera”. O meu irmão eventualmente foi encontrando outros destes melóideos gordos, provavelmente do género Meloe, mas nunca o bicho gordo, comprido, negro e vermelho que ficou no meu imaginário.

Meloe sp. - Foto (c) Pedro Andrade

Andando no tempo até ao ano 2011, no final de Março, eu e o meu irmão fomos numa saída de campo de alguns dias à região de Abrantes, no Ribatejo. Num desses dias, fomos ao vale da Ribeira de Alcolobre, que faz a fronteira entre os concelhos de Abrantes e Constância, onde encontramos uma linda galeria ripícola (que mostrarei no futuro), zonas de matos, eucaliptos, sobreiros e um campo de oliveiras. Durante a manhã, entre vários outros insectos, vimos um Meloe sp., visível na foto acima. Um bonito achado, mas não exactamente o que eu tinha visto uns anos antes. Por volta da hora do almoço, enquanto passávamos pelo campo de oliveiras (onde uma hora antes tínhamos visto um mangusto!), damos de cara com um outro melóideo gordo – desta feita um pouco mais estranho, comprido e com duas pintas vermelhas em cada lado do tórax.

Physomeloe corallifer, um endemismo ibérico - Foto (c) Pedro Andrade

Após uns minutos a fotografar o novo melóideo, olho em frente e deparo-me com mais dois: um com as pintas vermelhas e outro, maior, comprido com o corpo preto e riscas vermelhas transversais no abdómen! Um pouco mais tarde descobrimos que indivíduos de ambos os tipos eram muito comuns, especialmente os das pintas. Os grandes e compridos das riscas pareciam muito mais irrequietos, e mal sentem a presença de alguém correm a uma velocidade considerável, se tivermos em conta a sua estranha morfologia.

Chegados a casa, confirmamos as identidades destes gordos escaravelhos: o das pintas é Physomeloe corallifer, um endemismo ibérico, enquanto que o das riscas, que tanto me surpreendeu há uns anos atrás, é Berberomeloe majalis, a espécie mais comum deste género (a outra espécie de Berberomeloe, B. insignis, existe apenas no Sul de Espanha).

Berberomeloe majalis - Foto (c) Pedro Andrade

As características biológicas destes melóideos não são muito bem conhecidas, mas provavelmente serão semelhantes aos restantes membros da família. Os Meloidae são escaravelhos caracterizados por estados larvares parasitas/parasitóides (excepto nos Eleticinae, que têm larvas predadoras) e pela produção de um composto químico, a cantaridina, usado sobretudo para defesa (outros escaravelhos também produzem esta substância). O desenvolvimento larvar é dividido em várias fases, os instares, com diferentes morfologias (é um desenvolvimento hipermetabólico): após a fêmea depositar os ovos num buraco no chão, as larvas no seu primeiro instar, designadas triungulinas, eclodem e procuram um hospedeiro, agarrando-se a ele e aproveitando uma “boleia” – fenómeno designado forésia. Muitas vezes a boleia é “oferecida” por abelhas ou outros himenópteros, que levam a larva para o seu ninho. Lá, a larva de melóideo ocupa um lugar reservado a uma das larvas da abelha, comendo larvas, ovos e a comida destas, à medida que vai crescendo e transformando-se numa larva mais vermiforme, semelhante à dos outros escaravelhos (pelo meio pode passar também por uma fase mais imóvel), até que se transforma numa pupa, estádio intermédio até se tornar num adulto, adulto esse que é fitófago, alimentando-se de plantas ou de grãos de pólen.

Embora este ciclo de vida pareça complicado, a análise da evolução destes escaravelhos demonstra que o estilo de vida forético e parasita da larva evoluiu de forma independente pelo menos cinco vezes desde a origem do grupo, origem essa que terá ocorrido possivelmente no Cretácico Inferior (há 135-125 milhões de anos) no grande continente Gondwana que se começava a fragmentar com a abertura da metade Sul do Oceano Atlântico. Continuando com a evolução, mas passando especificamente para os nosso melóideos gordos, verificamos que não formam um grupo evolutivo próximo, estando mais relacionados com outros melóideos mais elegantes do que entre si: Berberomeloe com Mylabris e Oenas, enquanto que Meloe e Physomeloe formam ambos um grupo à margem de outros Meloinae.

 

Distribuição ibérica de Berberomeloe majalis e Physomeloe corallifer - Fonte: García-París et al 2003

B. majalis possui alguma variabilidade morfológica externa ao longo da sua distribuição, com indivíduos de tamanho bastante variável (alguns com menos de 1 cm, e com o tamanho máximo registado de 7,5 cm!), coloração variável entre indivíduos todos negros e indivíduos com grandes manchas transversais vermelhas no abdómen, e ainda variações nas pontuações da cabeça e tórax. Encontra-se distribuído por toda a Península Ibérica, uma pequena franja no Sul de França e no Noroeste africano, e o adulto pode ser encontrado em Abril e Maio em regiões de baixa e média altitude, e até Junho e Julho em zonas de maior altitude, até 1500m (embora na Serra Nevada possam ser encontrados até aos 3000m).

P. corallifer é uma espécie endémica da Península Ibérica, encontrada sobretudo associado em terrenos do Sistema Central, a cordilheira de montanhas que se ergue no centro da península (e que incluiu no seu extremo ocidental a Serra da Estrela), entre Março e Maio, a altitudes que chegam aos 1600m. A sua larva triungulina não é forética, ao contrário das larvas dos seus parentes próximos Meloe spp., mas é parasitóide. O seu aspecto externo é bastante homogéneo, salvo alguma variação na coloração vermelha das pintas do tórax.

O líquido avermelhado que o primeiro B. majalis “despejou” nas minhas mãos era provavelmente hemolinfa, o equivalente do nosso sangue em muitos artrópodes – este processo de largar sangue como meio de defesa é chamado reflex bleeding, e é bastante comum em insectos; é comum também que a hemolinfa esteja enriquecida em substâncias com características tóxicas ou que dão um sabor amargo, funcionando como um eficaz detractor para possíveis predadores. Nos melóideos essa substância é a cantaridina, um terpeno inodoro com alguma reputação como afrodisíaco. Ao longo de vários séculos foi também indicada como tendo propriedades diuréticas ou como indutor de abortos, mas com o advento da medicina moderna demonstrou-se que a cantaridina possui poucos usos terapêuticos ou afrodisíacos. Por outro lado, é uma substância tóxica para vários animais que poderiam ser seus predadores e mesmo para certos fungos que atacam os ovos. A cor destes animais, aliás, servirá provavelmente de aviso: cores vivas como vermelho e negro costumam ser adoptadas por insectos tóxicos como aviso para os seus predadores. O envenenamento por cantaridina designa-se cantaridismo e pode causar problemas gastrointestinais, renais e em casos mais extremos levar à morte.

Numa cena do filme “O Rei Leão”, Timon e Pumba convidam o jovem Simba a experimentar as delícias da entomofagia, servindo um prato cheio de insectos ao leão, que escolhe precisamente a larva mais gorda e suculenta de todas. Não teria sido uma experiência agradável se o Simba tivesse ingerido um melóideo!

 

Referências

– BOLOGNA, M., OLIVERIO, M., PITZALIS, M., & MARIOTTINI, P. (2008). Phylogeny and evolutionary history of the blister beetles (Coleoptera, Meloidae) Molecular Phylogenetics and Evolution, 48 (2), 679-693 DOI: 10.1016/j.ympev.2008.04.019

– García-París, M. (1998) – Revisión sistemática del género Berberomeloe Bologna, 1988 (Coleoptera, Meloidae) y diagnosis de un endemismo ibérico olvidado. Graellsia, 54: 97-109

– García-París, M.; Ruiz, J.L. & París, M. (2003) Los representantes ibéricos de la tribu Lyttini (Coleoptera, Meloidea). Graellsia, 59(2-3): 69-90.

– Nikbakhtzadeh, M. R. (2004) – Transfer and distribution of cantharidin within selected members of Blister Beetles (Coleoptera: Meloidae) and its probable  importance in sexual behaviour – PhD thesis. Universitat Bayreuth

– Selander, R.B. & Fasulo, T.R. (2003) – Blister Beetles (Insecta: Coleoptera: Meloidae). University of Florida – IFAS

5 Responses to Gordos e suculentos Meloidae!

  1. O Cidadão abt says:

    Bem parece que nesse dia, ambos trilhámos os os mesmos destinos, caro Pedro Andrade.

    Para uma recolha superficial de elementos sobre os mistérios da galeria ripícula do Alcolobre, faça uma viajem até este sitio…

    http://passoapassoabt.blogspot.com/2010/09/alcolobre.html

  2. José Rodrigues Ribeiro says:

    Bom dia

    Quando dei aulas na Escola Secundária de Estremoz em 1988 (sou professor do ensino secundário, presentemente em Esposende), cruzava-me frequentemente junto dascom diversos exemplares do Berberomeloe majalis, que os habitantes locais conheciam bem (davam-lhe o curioso nome de “vaca loura”, que no entanto noutras partes do país é usado para designar os insectos do género Lucanus.
    Isso aconteceu já no final da Primavera e também encontrei o mesmo insecto numa caminhada que fiz por essa altura a SE de Sousel.
    Dito isto, parabéns pelo texto. Muito interessante!

    Cordialmente

    José Ribeiro
    Esposende

    • Maria da Graça Corrente Matutino says:

      Olá
      Andei a pesquisar sobre vacas-louras. Estou no concelho de Nisa, na zona da Fadagosa e estamos em Maio/2023
      Os antigos diziam ser venenosa, afinal o líquido laranja que liberta é tóxico para os seus predadores.
      Obrigada pela informação.
      Graça Matutino

  3. José Rodrigues Ribeiro says:

    Só uma correcção. Não foi em 1988, mas sim em 1986 que vi o insecto.

Deixe um comentário